Em função do artigo da semana passada, no qual abordei o abuso do corte de água do condômino inadimplente feito pelo condomínio, resolvi publicar este para demonstrar porque as próprias companhias prestadoras dos serviços essenciais de água, esgoto e de energia elétrica também não podem fazê-lo, a não ser em circunstâncias muito especiais.
O Código de Defesa do Consumidor regrou no art. 22 especificamente os serviços públicos essenciais e sua existência para impedir que os prestadores de serviços públicos pudessem construir "teorias" para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC. (Mas, mesmo com sua expressa redação, alguns prestadores de serviços públicos lutaram na Justiça "fundamentados" no argumento de que não estariam submetidos às regras da Lei n. 8.078/90) (*1).
Serviço público prestado direta ou indiretamente
Diz a norma: "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento", vale dizer, toda e qualquer empresa pública ou privada que por via de contratação com a Administração Pública forneça serviços públicos, assim como, também, as autarquias, fundações e sociedades de economia mista. O que caracteriza a pessoa jurídica responsável na relação jurídica de consumo estabelecida é o serviço público que ela está oferecendo e/ou prestando.
No mesmo artigo a lei estabelece a obrigatoriedade de que os serviços prestados sejam "adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Examinemos o sentido desses termos.
Eficiência
Em primeiro lugar diga-se que essa disposição da norma decorre do princípio constitucional estampado no caput do art. 37. É o chamado princípio da eficiência (*2). É verdade que tal princípio somente passou a integrar explicitamente o corpo constitucional com a edição da Emenda n. 19, de 4 de junho de 1998, data posterior à edição da Lei n. 8.078/90. Mas a emenda citada apenas tornou explícito o princípio outrora implícito em nosso sistema constitucional, como explicam os Professores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior:
"O princípio da eficiência tem partes com as normas de 'boa administração', indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficácia possível todas as ações do Estado"(*3).
Hely Lopes Meirelles disciplina que a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Diz o administrativista:
"É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros"(*4).
É fato que a lei designa outros adjetivos aos serviços prestados, além do relativo à eficiência: fala em adequado, seguro e contínuo (este último para os essenciais, que ainda comentarei).
Ora, adjetivos expõem a qualidade de alguma coisa, no caso o serviço público. Então, quando o princípio constitucional do art. 37 impõe que a Administração Pública forneça serviços eficientes, está especificando sua qualidade. Ou, em outros termos, o tão falado conceito de qualidade, do ponto de vista dos serviços públicos, está marcado pelo parâmetro constitucional da eficiência.
E essa eficiência tem, conforme vimos, ontologicamente a função de determinar que os serviços públicos ofereçam o "maior número possível de efeitos positivos" para o administrado.
Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. E o significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona.
A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é suprida concretamente. É isso que o princípio constitucional pretende.
Assim, pode-se concluir com uma classificação das qualidades dos serviços públicos, nos quais o gênero é a eficiência, tudo o mais decorrendo dessa característica principal. Logo, adequação, segurança e continuidade (no caso dos serviços essenciais) são características ligadas à necessária eficiência dos serviços públicos.
Realmente, o serviço público só é eficiente se for adequado (p. ex., coleta de lixo seletiva, quando o consumidor tem como separar por pacotes o tipo de material a ser jogado fora), se for seguro (p. ex., transporte de passageiros em veículos controlados, inspecionados, com todos os itens mecânicos, elétricos etc. checados: freios, válvulas, combustível etc.), e, ainda, se for contínuo (p. ex., a energia elétrica sem cessação de fornecimento, água e esgoto da mesma forma, gás etc.).
Para uma classificação dos serviços públicos pelo aspecto da qualidade regulados pelo CDC, ter-se-ia, então, de dizer que no gênero eficiência estão os tipos adequado, seguro e contínuo.
Pode acontecer de o serviço ser adequado, mas não ser seguro. Ou ser seguro e descontínuo. Ou ser inadequado apesar de contínuo etc. No primeiro caso, cite-se como exemplo o serviço de gás encanado sem controle de inspeção das tubulações e/ou válvulas. No segundo cite-se o serviço de fornecimento de energia elétrica que é interrompido. No terceiro aponte-se o fornecimento contínuo de água contendo bactérias.
Em todos esses casos há vício do serviço e, dependendo do dano sofrido pelo consumidor, haverá também defeito. Tudo nos exatos termos do estabelecido nas regras dos arts. 14 e 20 do CDC.
E, claro, como os serviços públicos hão de ser eficientes, as variáveis reais possíveis da junção dos tipos não são apenas as dicotômicas apresentadas (adequado-inseguro; seguro-descontínuo; inadequado-contínuo etc.), mas também podem ocorrer pela conexão das três características: adequado-inseguro-descontínuo; inadequado-seguro-contínuo; adequado-seguro-descontínuo etc.
Foi isso o que ficou estabelecido na Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que disciplinou o regime de concessão e permissão dos serviços públicos, como decorrência do estabelecido no art. 175 da Constituição Federal.
É que a Carta Magna dispõe que a lei deve regulamentar a obrigação da manutenção do serviço público de forma adequada. Leia-se a citada norma constitucional:
"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado".
Os §§ 1º e 2º do art. 6º da Lei n. 8.987/95, então, dispõem:
"Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço".
Vê-se, portanto, que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes, adequados, seguros e contínuos.
Serviço essencial contínuo
Prosseguindo no exame, chega-se ao aspecto da essencialidade do serviço que, na determinação da norma do caput art. 22, tem de ser contínuo.
Há que distinguir dois aspectos: o que se pode entender por essencial e o que pretende a norma quando designa que esse serviço essencial tem de ser contínuo.
Serviço essencial
Começo pelo sentido de "essencial". Em medida amplíssima todo serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde etc. Nesse sentido então é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia etc.
Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos?
Para solucionar o problema, devem-se apontar dois aspectos:
a) o caráter não essencial de alguns serviços;
b) o aspecto de urgência.
Existem determinados serviços, entre os quais aponto aqueles de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que:
a) servem para que a máquina estatal funcione;
b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (p. ex., certidões).
Se se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só muito longínqua e indiretamente poder-se-ia fazê-lo.
Claro que existirão até mesmo emissões de documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando isso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso ilegalmente. É o caso concreto, então, nessas hipóteses especiais, que designará a essencialidade do serviço requerido.
O outro aspecto, sim, é relevante. Há no serviço considerado essencial uma perspectiva real e concreta de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma.
O serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado. E no sistema jurídico brasileiro há lei ordinária que define exatamente esse serviço público essencial e urgente.
Trata-se da Lei de Greve - Lei n. 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no art. 10, que dispõe, verbis:
"Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II - assistência médica e hospitalar;
III -distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV- funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de susbstâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI - compensação bancária".
Dessa forma, nenhum desses serviços pode ser interrompido. O CDC é claro, taxativo e não abre exceções: os serviços essenciais são contínuos. E diga-se em reforço que essa garantia decorre do texto constitucional.
Com efeito, como se sabe, a legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º) etc.
Ora, vê-se aí a inteligência da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio ambiente equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos.
Interrupção
A Lei n. 8.987, citada acima, prevê a possibilidade de interrupção do serviço público em situação de emergência por motivo de "ordem técnica ou de segurança das instalações" (art. 6º, § 3º, I).
Em primeiro lugar, essa regra excepcional apenas constata que certas situações de fato podem ocorrer (mas não deviam: razões de ordem técnica e segurança das instalações que gerem a necessidade de interrupção), e tais situações, ainda que, eventualmente, venham a surgir, significam interrupção irregular do serviço público, aliás em clara contradição com o sentido de eficiência e adequação. Afinal, problema técnico e de insegurança demonstra ineficiência e inadequação. (Lembro que qualquer dano - material ou moral - causado pela interrupção dá direito a indenização, uma vez que a responsabilidade do prestador do serviço é objetiva, e a mera constatação da possibilidade de descontinuidade feita pelo art. 6º, § 3º, I, da Lei n. 8.987 não tem o condão de elidir a responsabilidade instituída no CDC).
Inadimplência do consumidor
Alguns operadores do direito, a meu ver de forma equivocada, têm-se manifestado no sentido contrário à norma (e mesmo contra sua clara letra expressa), admitindo que o prestador do serviço público corte o fornecimento do serviço essencial em caso de inadimplemento.
Antes de apresentar os argumentos pró e contra a descontinuidade em caso de inadimplemento, há que se abordar, como preliminar, a hipótese inserta na supracitada Lei n. 8.987.
Isso porque aquele mesmo § 3º do art. 6º dispõe não se caracterizar como descontínuo o serviço quando ocorrer "inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade".
E essa disposição tem servido de apoio àqueles que, erradamente, admitem o corte do fornecimento em caso de não pagamento da tarifa.
Autor: Rizzatto Nunes
Fonte: Síndico Net
Obs.: Os textos aqui apresentados s?o extra?dos das fontes citadas em cada mat?ria, cabendo ?s fontes apresentadas o cr?dito pelas mesmas.